Anjos da Paz vão às ruas para levar acolhimento a dependentes

Anjos da Paz vão às ruas para levar acolhimento a dependentes

Enquanto o vai-e-vem de carros diminui no Centro de Maceió,à medida que a hora avança,um grupo de jovens se prepara para cumprir mais uma missão nas ruas da capital.O ponto de partida é o Comando Geral da Polícia Militar, onde uma equipe de policiais está preparada para acompanhar e dar apoio à ação.

É de lá que saem em direção aos becos, prédios abandonados, áreas escuras e sombrias, nos trilhos desativados do trem, região do comércio, margens da lagoa Mundaú, no Dique Estrada, praças. Enfim, onde houver dependentes químicos lá estarão os Anjos da Paz, como são chamados os jovens psicólogos e assistentes sociais que atuam no programa Acolhe Alagoas, uma missão de resgate da cidadania, mas acima de tudo, de amor a quem perdeu todos os referenciais humanos, devastados pelo uso das drogas, principalmente o crack.

O crack faz vítimas sem distinção, destrói famílias e produz a pior de todas as violências: aquela que se pratica para manter o vício que domina mentes.

Uma missão de amor
Vestidos com camisas azuis, com o símbolo do programa, os Anjos da Paz em momento algum esboçam cansaço ou desânimo com o trabalho que se estende noite adentro. Ao contrário, a disposição em ajudar só aumenta à medida que eles conseguem convencer os dependentes a seguirem para comunidades acolhedoras, onde terão a oportunidade de mudar de vida, abandonar as drogas e voltar para a família, que deixaram para trás, levados que foram para as ruas em busca do que os alimenta: o crack.

Sob o olhar atento das pessoas por onde passa, a caravana da paz inicia o percurso definido para a ação, a maior já realizada até agora. Comandados pelo superintendente de Política sobre Drogas, Luan Gama, da Secretaria de Estado de Promoção da Paz (Sepaz), os profissionais acomodam-se nos cinco veículos – sendo duas vans – que os conduzem em busca dos dependentes.

É preciso habilidade e acima de tudo carinho para tentar convencer a quem precisa seguir com o grupo para as comunidades acolhedoras. E isso, os Anjos da Paz têm de sobra.

“Mais do que um trabalho, uma lição de vida”
Há quatro anos, a psicóloga Aretha Karla Costa dos Santos trabalha com dependentes químicos. Não considera o que faz um trabalho, necessariamente, mas “uma missão de vida”.

“Nossa missão é levar esperança para essas pessoas. Por isso, considero o que faço mais do que uma ação profissional. Na verdade, ao lidar com as pessoas que estão à margem da sociedade, a gente adquire experiência de vida. Nossos problemas se tornam pequenos diante do sofrimento deles”, afirma.

Ela diz que o maior desafio é manter os dependentes longe das drogas. “Como a dependência não tem cura, eles vivem em constante tratamento. Muitos retornam. Outros, não. Mas mesmo os que voltam para o ambiente de consumo da droga, depois de passarem pelo acolhimento voluntário vivenciam um processo de mudança de vida. Ou seja, houve uma ressignificação na vida dessas pessoas”, afirma Aretha.

Tentar resgatar os vínculos familiares, segundo a psicóloga, “é tão importante quanto tirar essas pessoas da dependência”.

Um “anjo” chamado Gabriel
Gabriel Vasconcelos estava em sua estreia entre os Anjos da Paz, no dia da maior busca de acolhimento noturno realizada em Maceió, em 12 de fevereiro. Psicólogo, ele disse estar mais do que preparado para encarar o desafio de tentar tirar das ruas e acolher em locais próprios os dependentes que encontrassem naquela noite e desejassem seguir voluntariamente com o grupo. Ou não, resposta dada por muitos dos abordados, principalmente quando estão sob o efeito das drogas.

“Nós que lidamos com comportamento humano, lidamos também com os aspectos sadios e não tão sadios das pessoas, a exemplo dos dependentes”, diz. Gabriel já havia trabalhado em comunidade terapêutica e não conseguia esconder a ansiedade em integrar os Anjos da Paz.

“Na condição de psicólogo me sinto realizado. Vou me esforçar para ajudar ao máximo as pessoas. Esse é um trabalho prazeroso. Melhor ainda são os resultados. Recebemos uma pessoa que passou pela comunidade acolhedora e hoje está recuperada; trabalhando em um supermercado. Voltou a ter atividade laboral e uma vida digna”, disse Gabriel, em seu “batismo” como Anjo da Paz.

Becos, calçadas e prédios abandonados viram morada
O comboio segue pelos becos e áreas escuras da cidade, onde os dependentes costumam “se esconder” para consumir a droga sem serem incomodados ou agredidos. Esses lugares acabam se transformando na morada dessas pessoas, que deixaram para trás casa, família, filhos e o trabalho, que não conseguem mais executar, dominados que estão pelo poder do crack.

Tiros nos braços “para não roubar mais”
Aos 27 anos, um dos abordados pelos Anjos da Paz estava em um trecho do trilho desativado, em Jaraguá. Um lugar escuro, com odor forte, onde grupos sobrevivem em condições subumanas. É conhecido como “Marcele.”

O odor do álcool e do crack são sentidos de longe. Ele logo se aproxima. Falante, faz questão de contar sua história. Mas antes, tenta “matar” a curiosidade da repórter, que ao se aproximar para ver de perto como é uma pedra de crack, não apenas é “apresentada” à droga, mas tem uma pedrinha colocada em uma de suas narinas.

Um cheiro forte inalado sob pressão
Sem esboçar reação, para não assustar o entrevistado, inala aquele odor que se assemelha ao cheiro de planta. Marcele tenta mais uma vez colocar a pedra para a repórter cheirar. Dessa vez, ouve um não. Não se conforma, e mostra como faz para tragar o crack. “Você não é repórter? Tem que saber como é que a gente usa!”, diz em tom de desafio.

A conversa flui e ele conta que trabalhou como cabeleireiro em salões de beleza famosos. Diz que concluiu o segundo grau, que a família mora no Farol e afirma que está nas ruas “porque os amigos chamaram”. “Quando usei crack pela primeira vez não gostei. Tinha 19 anos. Odiei, mas fiquei muito curioso e acabei viciado. Estou há mais ou menos dois anos sem trabalhar. Peço dinheiro nas ruas para comprar o crack”, confessa.

Quando indago se já roubou, ele é categórico: “Roubei R$ 9 mil. Aí o homem [cujo nome ele não cita] me deu nove tiros. Todos no braço. Disse que era para eu nunca mais roubar ninguém. Hoje não roubo mais de jeito nenhum”. Não aceitou seguir para uma comunidade acolhedora.

Dependência destrói referenciais humanos
No mesmo lugar, outras pessoas usam o crack, enquanto bebem cachaça. Pajé e Paulinho aceitam seguir com os Anjos da Paz. Os demais permanecem no local. Entre eles um homem de 47, e a companheira, que não sabe sequer a idade que possui. Diz apenas que nasceu em 1981.

Em total estado de abandono, ela divide com o companheiro um colchão na calçada de um armazém em Jaraguá. Sem saber do que se trata, ele mostra um documento determinando que o casal deve desocupar o local no dia seguinte. Os profissionais do projeto Acolhe Alagoas bem que tentam convencer Elias e a companheira, que mal conseguia falar, a ir com eles. Mas não conseguem.

“Vivo aqui, mas tenho meu aluguel”, diz Elias. Quando indagado quem mora na casa que ele diz pagar, afirma: “Meus filhos!”. Ele conta que está há mais de 20 anos nas ruas. Trabalha catando material reciclável e diz que os filhos, já adultos, mantêm contato com ele. “Às vezes eles vêm aqui e falam: painho, porque o senhor não volta pra casa? Apareça. Tanto a menina, quanto o menino”. Diz que o álcool não permite que tenha mais uma vida em família, muito menos que volte a trabalhar como servente de pedreiro, como antes de se tornar dependente químico.

A companheira cria um gatinho e um cachorro. Não esconde o carinho pelos bichos. Sentada no colchão, ela se mantém cabisbaixa, enquanto balbucia algumas palavras. Conta que só pensa em beber, que é de Palmares, em Pernambuco, onde deixou a família para morar com Elias, que conheceu nas ruas de Maceió.

Violência, ameaça e abandono
Na praia do Sobral, no Pontal, uma cena deprimente e chocante: uma mulher é espancada pelo companheiro e, aos gritos, pede socorro. A cena, segundo as pessoas que dividem com eles o mesmo espaço, é “comum”. “Ela apanha quase todo dia. Fica jogando pedra nele porque ele não quer dar dinheiro para ela comprar crack”, diz Karina, 26, uma usuária da droga e de cola desde os 11 anos de idade.

Nessa hora, é preciso a intervenção da polícia, já que os Anjos da Paz não conseguem conter o agressor. Enquanto isso, para os que dividem o mesmo espaço, é como se nada estivesse acontecendo. Continuam se drogando, enquanto a polícia controla o agressor e telefona para o Conselho Tutelar para buscar o filho do casal, um bebezinho que dormia embaixo de um barraco de papelão.

O clima fica ainda mais tenso quando um grupo de crianças, totalmente dominadas pelo crack, parte para cima dos profissionais do Acolhe Alagoas e da imprensa, numa tentativa de intimidação e para evitar ser filmados e fotografados. Um garoto aparentando uns 11 anos parte para cima da reportagem, completamente alucinado. Chama palavrões e afirma que não vai falar nada para ninguém, em tom agressivo e ameaçador. Colegas de faixa etária parecida se aproximam e aí o jeito é sair e deixá-los livres, como acreditam estar nas ruas da cidade.

Laços familiares são afetados ou desfeitos
Karina, porém, aceitou falar. Franzina, ela está grávida pela oitava vez. Diz que três dos filhos que sobreviveram – dois meninos, com 11 e oito anos e uma menina de cinco anos – moram com o pai em um conjunto na Santa Amélia.
“Saí de casa com 11 anos e comecei a cheirar cola. Aí veio o crack. Eu me arrependi. Estudava à noite e ia para a igreja. Trabalhava. Vendia coco na praia. Queria mesmo era voltar para casa. Ficar com meus filhos. Eles me chamam de tia.”, diz Karina, que apesar do relato, não aceita seguir com os Anjos da Paz para uma comunidade acolhedora. Justifica que no dia seguinte ia fazer um exame. Fala que o filho é “de um coroa que mora no Reginaldo”, e fica com o grupo no beco escuro da praia do Sobral.

O trabalho dos Anjos da Paz prossegue. Cinco pessoas aceitaram voluntariamente seguir com eles. Na praça Centenário, no Farol, um garoto se aproxima dos profissionais e pede para ser conduzido a uma comunidade acolhedora. No Papódromo, no Dique Estrada, outro é convencido pela senhora a quem chama de mãe a aceitar a ajuda.

Projeto é fundamental no combate à violência
O secretário de Estado da Promoção da Paz, Adalberon Sá Júnior, não tem dúvida: O Projeto Acolhe e seus Anjos da Paz não apenas trouxeram esperança de resgate da cidadania para dependentes químicos e suas famílias, mas acima de tudo contribui com o combate e controle da violência no Estado, uma vez que a criminalidade, segundo afirma, na maioria dos casos, está diretamente ligada ao consumo de drogas.

“Nosso foco é a mudança de comportamento dessas pessoas. Esse é nosso desafio”, afirma Adalberon, segundo o qual, essa mudança não é tarefa simples, mas possível, graças ao apoio das comunidades terapêuticas e a forma de ação do projeto, a partir da abordagem nas ruas e de atenção à família.

“Antes as famílias procuravam serviços como o Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência] ou a polícia. Tratavam o dependente como um problema de saúde ou caso de polícia. Hoje, essa ideia não funciona mais”, ressalta, ao indagar: “Há quanto tempo não se vê um caso de uma pessoa ter sido acorrentada pela própria família na tentativa de impedir que use o crack?”.

Droga faz vítimas todos os dias
“O crack é muito compulsivo, impulsiona o dependente a fazer o que puder para conseguir. Com essa visão, o projeto Acolhe Alagoas foi criado. Não se trata de uma estratégia de tratamento, mas de prevenção. Não queremos recolher, mas sim acolher”, ressalta Adalberon. Não é à toa, segundo o secretário, que o usuário chega a praticar delitos, como roubar, para alimentar o vício.

“Não estamos falando de bandidos, que estão praticando crimes por maldade, mas para saciar um vício. Estamos falando de alguém que já roubou tudo o que podia; alguém que se for preciso vai matar. Essa relação consumo x tráfico, tira vidas todos os dias. Ao tirarmos essas pessoas das ruas ou local onde consomem a droga e levarmos para as comunidades acolhedoras, estamos na prática evitando que elas roubem, assaltem e matem. É acolher para prevenir a violência. Que essa pessoa seja um agente ou uma vítima da violência. É isso que o Projeto Acolhe e os Anjos buscam: devolver a paz às famílias, a dignidade aos dependentes e no sentido amplo, segurança à sociedade”, diz o secretário Adalberon.

Longe das ruas, esperança que se renova
Quinze dias após ter deixado uma das áreas onde a equipe do Acolhe Alagoas esteve, em Jaraguá, Pajé mais parece outra pessoa. Cabelo cortado, roupas limpas, e um cheiro de perfume que se espalha no ar, ele traz no rosto um sorriso de paz. Encontra-se em uma das comunidades acolhedoras para onde foi levado ao aceitar o convite dos Anjos da Paz e buscar uma vida nova, longe das drogas, do álcool e dos riscos que corria nas ruas onde vivia há 22 anos.

Foi preso várias vezes, apanhou, perdeu todas as referências familiares, ao deixar a família após ter perdido o emprego como pedreiro. “Não tinha dinheiro para nada e entrei em depressão. Aí larguei a mulher e os quatro filhos e fui pra rua, onde vivia de bebida e do crack”, diz. Ele conta que um dia estava tão drogado, que um carro bateu nele, fraturou a mão. No dia que a reportagem esteve na comunidade acolhedora, ele havia chegado do médico. Aproveitou e foi ver a mãe, que segundo ele pediu muito que continuasse na comunidade acolhedora.

“Tá com cinco dias que mataram dois amigos meus lá da rua. Não quero isso pra mim. Meu pensamento está sempre voltado para casa. Quero reconstruir minha família. Sei que eles precisam de mim; me dão apoio para que eu possa voltar a trabalhar”, ressalta Pajé.

Do vício, à reconstrução de vidas
Muitas das pessoas que moram nas comunidades acolhedoras um dia já sentiram na pele o drama de viver nas ruas, dominado pelas drogas. Hoje, são os “anjos” que recebem os que buscam ajuda nas comunidades acolhedoras.

“Passei 22 anos envolvido com drogas. Comecei com maconha, influenciado por um amigo de escola. Deixei minha família e saí de casa para viver nas ruas. Larguei o trabalho como soldador elétrico e percorri quase esse Brasil todo. Fui preso várias vezes, apanhei muito. Levei muitas pessoas para as drogas. Cheguei ao fundo do poço e aí conheci uma assistente social que me levou para o projeto Desafio Jovem. Fui, conheci a igreja e uma pessoa com quem me casei e estou até hoje. Aos 63 anos, agradeço a Deus por ter deixado aquela vida. É preciso muita força de vontade”, relata o coordenador da comunidade acolhedora para onde Pajé foi levado.
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(Niviane Rodrigues /Agência Alagoas)

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Edivaldo Junior

Edivaldo Junior

Edivaldo Junior é jornalista, colunista da Gazeta de Alagoas e editor do caderno Gazeta Rural

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