Livros usados: sebos de Arapiraca são a verdadeira resistência cultural

http://edivaldojunior.com.br/wp-content/uploads/2018/12/WhatsApp-Image-2018-12-05-at-20.37.38.jpegLivros usados: sebos de Arapiraca são a verdadeira resistência cultural

Nada melhor que as mãos sublimando um dicionário. No Aurélio, lá está ela: alfarrábio. Substantivo masculino. “Livro antigo ou velho”. Mas essa ainda não é a palavra.

O repórter folheia mais um tanto. Chega até “sebo”. Também substantivo masculino, porém com uma certa polissemia. Entre as coisas que significa, é uma “Livraria onde se vendem livros usados”.

Em busca da palavra achada, ele monta em sua bicicleta e traça mentalmente o caminho. Há dois sebos em Arapiraca e pouca gente sabe disso. Dois sebos para mais de 240 mil habitantes. E pouca gente sabe disso.

Livraria na cidade não há. O comércio virtual tomou o gosto do leitor e estes locais que vendem obras no formato físico são verdadeiras entidades de resistência cultural.

Uma delas é “O Livreiro”, que fica na Rua Dom Jonas Batingas, nº 160, no bairro Ouro Preto, bem pertinho do saudoso Bar do Paulo. Um ponto de referência é que o seu galpão fica em frente à Rápido Infoshop.

Já a outra, o “Nano Sebo”, é situada na Rua Expedicionários Brasileiros, nº 127, no Centro, funcionando numa residência geminada bem ao lado do Hotel Íbis.

Há certa distância entre um ponto e o outro, mas o que os une é um aspecto consanguíneo. Os proprietários d’O Livreiro e Nano Sebo são curiosamente irmãos. O amor pela palavra escrita acaba vindo, posteriormente, na esteira desses mesmos laços.

Pedalando pelas ruas arapiraquenses, o repórter, que reside no bairro Capiatã estaciona primeiro a sua bicicleta sem marcha à porta do Nano Sebo, afinal, é a parada mais perto. Bota o cadeado para poder demorar mais e bater um papo com Luciano Correia Cavalcante, de 53 anos de idade, grande amante de quadrinhos e temas relacionados ao realismo fantástico e à Segunda Guerra Mundial.

Ele abriu o empreendimento há dois anos, dois meses após a morte de sua amada mãe Letícia. Os livros, então, ganham uma conotação ainda maior: a de contato com as outras pessoas, a de troca de fluidos espirituais e presença física.

O Nano Sebo funciona justamente na casa onde os dois, sua mãe e ele, moravam desde 2013, quando Luciano voltou para Arapiraca – ele foi para Maceió estudar Engenharia Química em 1985, curso o qual deixou de lado, residindo na capital desde então.

“Vou lhe ser sincero: quando surgiu o tablet, pensei que a papelaria e a livraria iam desaparecer. O que de fato não aconteceu (da mesma forma que a televisão não substituiu o rádio). A ida – neste caso, a vinda – a um sebo é uma espécie de ‘volta ao passado’. Não deixa de ser interessante”, diz ele.

Muitas histórias estão ali armazenadas. Não apenas dentro dos livros, contudo em volta deles. Livros de segunda mão sempre têm histórias por trás.

De quem terá sido aquele “Mulheres Apaixonadas”, de D.H. Lawrence, que está numa das estantes do Nano Sebo? O que o ex-dono achou dessa obra? Ela, por acaso, revolucionou o leitor por dentro? Foi uma coisa profunda ou apenas uma leitura dinâmica? Perguntas que não precisam de respostas. Mas dizem muito.

Assim que entramos pela porta de ferro marrom, vemos um mundo de cores e letras. Nas estantes, tanto na área externa como na sala, dezenas de exemplares riquíssimos como “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri, com as ilustrações originais feitas por Gustave Doré, edição de quase um século atrás.

Por lá também há “Os Bastidores do Nazismo”, de Sérgio Peixoto Silva; “Nada de Novo no Front”, de Erich Maria Remarque; “Victor Hugo – uma biografia”, de Graham Robb; “O Ladrão de Raios”, de Rick Riordan; “Nosso Lar”, de Chico Xavier; “O Vale dos Fantasmas”, de Edgar Wallace; “E Não Sobrou Ninguém”, de Agatha Christie; “O Tigre de Palmares”, de Adalberon Cavalcanti Lins; “Breve História da África”, de JD Fage e Roland Oliver; “O Vermelho e o Negro”, de Stendhal; “O Senhor Embaixador”, de Érico Veríssimo; “Macunaíma”, de Mário de Andrade; e “A Madona de Cedro”, de Antônio Callado. Todos eles a preços acessíveis e convidativos.

Ah, e ainda existem diversos atlas, gibis (e, aqui, uma infinidade deles, indo dos clássicos da Disney e de super-heróis, como Flash Gordon, os X-Men, Batman e Fantasma, até peças em línguas estrangeiras, trazendo o espanhol, o inglês e o italiano para a arte sequencial), enciclopédias, biografias de personalidades, livros da Coleção Primeiros Passos, revistas da National Geographic e Planeta. Mal dá para respirar. Não pela poeira. (Pelo contrário. O ambiente é muito bem disposto e organizado por sessões.) Mas, sim, pela infinidade de opções boas para levarmos para casa.

“Juntei muita coisa e agora estou ‘devolvendo’ ao povo. Por isso montei o Nano Sebo. Iniciativas assim precisam se revelar, precisam aparecer para que mais pessoas tenham acesso à literatura, às letras. Eis então o nosso objetivo enquanto comerciante: vai além dessa coisa, dessa relação com o dinheiro. O que queremos é mostrar, é dar a possibilidade de contato com a cultura de outros povos, outros pontos de vista a partir da leitura. Isso é o mais importante!”, pontua Luciano, que tem uma curiosa característica.

Este “o que queremos” referencia também a jornada de seu irmão, à frente d’O Livreiro, Leomar Correia Cavalcante. Enquanto Luciano cobra um preço x pelas publicações, o que comumente se pede por usados, Leomar se valida de uma perspectiva diferente.

“Sempre procurei locais para não pagar aluguel. Isso foi decisivo para baratear o preço final do livro, da revista, do cordel que eu vendia”, conta Leo.

Contudo é o “valor” – novamente o caráter polissêmico da palavra agindo – que distingue os dois sebos arapiraquenses: o Nano Sebo tem noção do valor de cada obra e, para tanto, um preço mais elevado é posto em questão. Nada mais justo. Há itens raríssimos, que mal se encontram na internet por lá.

Já O Livreiro entende que o valor de uma obra é também o seu alcance. Portanto, na ótica do seu Leo, quanto mais barato, mais o livro vai “rodar”, vai “poder sair”, e por conseguinte mais pessoas poderão lê-lo.

As pedaladas deste repórter rumavam agora o bairro Ouro Preto, chegando até o galpão literário. O sol podia esperar.

Já na entrada, pôsteres chamando o olhar. As paredes tomadas com Chaplin, Faith No More, Bruce Lee, Raul Seixas, Julio Iglesias, James Talyor, Sylvester Stallone, Jean Claude Van Damme, Tom Cruise, Arnold Schwarzenegger, Ayrton Senna e de times de futebol campeões.

“Comecei com a banca Boa Esperança ali pelo ano de 1976, vendendo revistas e cordéis. Funcionava em frente à nossa casa, na Praça Manoel André, nº 239, no Centro. Lembro como hoje daqueles dias. Foi o nosso pai que construiu essa minha primeira banca. Eu abria apenas às segundas-feiras”, revela ele.

Os pais de Leo e Luciano – o comerciante Mariano e a professora Letícia – deixaram um legado e tanto para ambos: a curiosidade. Isso é percebido logo de cara, quando se conversa com qualquer um dos dois. (Há um outro irmão, o Liciano, que também adora ler.)

“Eu sempre tive essa grande sede por ler livros e jornais. Não era e não é apenas por comércio. Eu lia as biografias dos grandes pensadores da Humanidade e ficava maravilhado, sensibilizado como aqueles pessoas fizeram tais coisas. O mínimo que eu poderia fazer era repassar isso adiante”, comenta Leo.

Da banca Boa Esperança, ele então partiu a um galpão em frente à sua residência e depois para a Rua Doutor Pedro Correia, já em meados de 1990, num ponto pertinho do Bar do Bode. O cheiro do cozido que tomava a rua se misturava ao dos livros.

Nessa época, ele estava em parceria com diversas editoras e também viajava bastante para conseguir mais acervo para venda. Ia a Caruaru, Recife e Maceió (no famoso “paredão da Assembleia”), chegando a comprar livros e revistas a quilo.

“Sempre tentei ser imparcial nas vendas, não deixando o meu gosto pessoal interferir ou influenciar o leitor-consumidor”, diz Leo. Ele saiu do Centro para o Ouro Preto por este galpão ser de sua família e achar que era hora de ter um espaço mais amplo para os seus clientes.

Por lá há cordel, livros de piada, revistas adultas, gibis, culinária, dicionários e enciclopédias, itens de Medicina e Direito e daqueles romances chick-lit, como Sabrina. Muitas dessas aquisições hoje são feitas por compra direta ou mesmo doações – pessoas que mudam de religião e se desligam dos livros, por exemplo. Os causos são muitos nesses mais de 40 anos na área.

Numa rápida pincelada, notam-se obras como “Feliz Ano Velho”, de Marcelo Rubens Paiva; “A Dor”, de Marguerite Duras; “Olhos de Cão Azul”, de Gabriel García Márquez; “Jessica – Fruto Proibido”, de Anne McAllister; “O Clube dos Inocentes”, de Taylor Smith; “Sabrina – Um Homem Enigmático”, de Carole Mortimer; revistas da National Geographic, Psiqué, Mundo Estranho, Superinteressante, Aventuras na História e Galileu; e tem espaço para vinis e DVDs também, para livros didáticos e em diversas outras línguas.

Ele está no mesmo endereço com O Livreiro desde a virada do milênio. “Uma coisa que me comoveu bastante foi um frequentador ter dito que passou no vestibular por conta dos livros que comprava aqui. Isso já faz um certo tempo, mas sempre me recordo como uma coisa boa. Estamos todos conectados uns com os outros de alguma forma”, lembra Leo.

Numa dessas incursões, ele também traz à tona um fato de estar lendo, por exemplo, um livro e um leitor querer levar. “Paro a obra na mesma hora. Coloco o preço e ela vai embora. Isso me aconteceu com o ‘Dom Casmurro’, do Machado de Assis. Só depois quando alguém deixou outro livro aqui dele que pude concluir a leitura”, ri ele, batendo a mão num dos exemplares que o repórter estava “paquerando”.

Por ali, chega de supetão Paulo Lourenço da Silva, o “Paulo do Bar do Paulo”, ícone da cultura arapiraquense, que tinha um estabelecimento que tocava as melhores músicas e fez a cabeça de toda uma geração em décadas passadas, com conversas sobre política, filosofia, cinema e, claro, literatura. Um abraço grupal acontece.

Sempre que pode, também amante da literatura, Paulo passa n’O Livreiro para dar um alô. “Minha ‘formação acadêmica’ foi dentro dos livros”, coloca ele, sabendo da importância desse objeto sagrado que cabe nas nossas mãos, graças a Gutemberg.

E é isso. Cada um toma seu rumo. Leo senta-se novamente, Paulo segue a trilha domiciliar e o repórter encara alguns livros para a eventual compra – no Nano Sebo, havia feito o mesmo. Sem pedir desconto, claro, por entender da luta que é manter um lugar assim. Temos é que prestigiar.

Com o lado esquerdo do guidão de sua bicicleta tomado pelo peso da sacola cheia de livros do Nano Sebo e o direito, d’O Livreiro, foi-se equilibrando até sua casa, agora abastecido com seu real combustível, o que lhe motiva a escrever, a fazer matérias como esta.

Paisagens internas lhe tomam a vista entre um semáforo e outro e algumas frases dos dois únicos donos de sebos da cidade se repetem em sua cabeça.

Primeiro com Luciano, do Nano Sebo, que está há apenas dois anos no ramo, no entanto, com uma bagagem sem precedentes: “Paradoxalmente, Breno, com medo, a gente só dá o passo certo. Temos que nos arriscar. Temos que investir o nosso tempo em algo que realmente nos dirija para uma condição melhor, não no sentido financeiro. Precisamos enxergar o mundo com ele é. E a leitura abre essa cortina. Há forças obscuras que têm interesse de manter o povo ignorante. Perceber isso já é muito importante! Meu irmão captou isso desde cedo com O Livreiro. A melhor forma de resistirmos é lendo”.

E depois é a vez de Leo, d’O Livreiro, o irmão mais velho e igualmente compassivo: “Como uma mente vai ter desenvolvimento, vai evoluir? Não podemos ficar apenas nas ‘matérias leves’. Temos que exercitar o pensar. A leitura é esse exercício diário que precisamos para o nosso cérebro fluir melhor. Literatura não é só entretenimento. É formação. E trabalhar com isso é uma paixão. É gostoso lidar com livro. Isso aqui é sonho; isso aqui é história”.

Só nos resta agradecer a essas palavras e pela mantença desses espaços onde a própria palavra habita e se refaz nos olhos dos outros.


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